Venho divulgar e republicar texto publicado
no sitio viomundo no dia 26 de agosto do corrente ano! Tal texto trata da prática
a que se tem recorrido no Brasil a fim de conter a juventude outsider. Quando
tal categoria de indivíduos não está inscrita em algum dos projetos e objetivos
sistêmicos como meros obreiros ou matéria prima, então esta é encarada como
problema para este próprio sistema e que deve ser isolado, quando não eliminado.
Assim, veja-se o texto, profundamente critico
acerca de tais dinâmicas repugnantes de punição/docilização!
Kenarik
Boujikian: Toque de recolher, juventude ou gado?
por Kenarik Boujikian Felippe
Projeto
de lei apresentado em agosto de 2011, na Assembléia Legislativa do Estado de
São Paulo, quer tratar os adolescentes como gado, que se leva ao pasto e depois
recolhe, mas com jovem, tem que ser diferente.
O
projeto de lei, que fere todos os princípios que norteiam as normas vigentes,
estabelece que será vedado aos menores de 18 anos desacompanhados de mãe, pai
ou responsável, no período das 23h30 (vinte e três horas e trinta minutos) às
5h (cinco horas): transitar ou permanecer nas ruas; entrar ou permanecer
em: restaurantes, bares, padarias, lanchonetes, cafés ou afins; boates,
danceterias ou afins; lan houses, casas de fliperama ou afins; locais de
freqüência coletiva.
Prevê
a criação de equipes, que compostas por policiais civis ou militares, além de
conselheiros tutelares, farão ronda, com a finalidade protetiva de recolher os
menores de 18 (dezoito) anos que estiverem em situação de risco, que
estejam expostos a qualquer tipo de: ilicitude; comportamento impróprio
para sua faixa etária; insalubridade; situação degradante. Exemplifica
situações de risco como as que envolvem as seguintes práticas: consumo de
bebida alcoólica, cigarro ou qualquer outra droga, por menor de 18 (dezoito)
anos; prostituição; audição de som em alto volume, propagado por veículos
particulares ou estabelecimentos comerciais; condução de veículo automotor, por
menores de 18 anos.
Em
algumas cidades, de diversos estados, já existe lei municipal
(inconstitucional), que têm a mesma formatação.
O
tratamento que se pretende dar à juventude é a mesmo dispensado àqueles que
cometeram crimes e foram condenados.
O
direito fundamental de ir e vir está previsto na constituição federal e o
estatuto jurídico do preso é exceção à regra, nos termos da própria
constituição.
Assim,
a Lei de Execução Penal prevê que podem ser impostas ao condenado no livramento
condicional, como condição, recolher-se à habitação em hora fixada (artigo 132,
parágrafo 2º); para o condenado que cumprirá a pena em regime aberto o
juiz estabelece a condição de sair para o trabalho e retornar nos horários
fixados (artigo 115, II); nas saídas temporárias, o juiz fixa a condição de
recolhimento à residência visitada, no período noturno (artigo 124, II).
A
limitação espacial, num estado democrático, é medida da maior gravidade.
A
regra é o gozo do direito fundamental de ir e vir. Exceção constitucional ao
direito de locomoção é a vigência do estado de sítio, quando será possível
determinar a obrigação de permanência em localidade estabelecida, lembrando que
esta medida exige a intervenção do Presidente, Conselho da República e
Congresso Nacional, dada às suas conseqüências nefastas. Só pode ser decretada
em razão da ineficiência do estado de defesa, comoção grave ou declaração de
estado de guerra, e, ainda, deve ser por tempo determinado.
Nas
cidades onde existe o “toque de recolher”, os jovens foram alçados à condição
de condenados ou inimigos do estado.
Tratar
a juventude, pela circunstância de serem crianças ou adolescentes, como
condenados, é desrespeitar a natureza de humano das pessoas e não ver as
crianças e os adolescentes como sujeitos de direito.
Alguns Tribunais
já enfrentaram a matéria e foi declarada a inconstitucionalidade da norma
municipal. Neste sentido, a decisão do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de
Santa Catarina, de junho de 2011, na ADIN 2010.014498-7, referente à lei
municipal de Tubarão, relatada pelo desembargador Lédio Rosa de Andrade, que
traz lição de Rosinei Paes Anselmo:
“Em
pleno século XXI, deparamo-nos com práticas que remontam ao período medieval e
ditatorial nas questões relacionadas ao direito da criança e do adolescente.
Questão
que comprova essa situação é o toque de recolher – proibição de circulação de
crianças e adolescentes nas ruas no período noturno, adotado em algumas cidades
do país, por meio de lei municipal ou por portaria de juízes da infância e
juventude.
A
medida é um retrocesso que retoma o pensamento da idade média e do “período de
chumbo”, segundo o qual os direitos e garantias individuais eram ignorados,
notadamente no que diz respeito à criança e ao adolescente”.
O
mesmo órgão já decidira, em março, em caráter liminar, a inconstitucionalidade
da lei do “toque de proteger”, da cidade de Guaramirim, no processo
2010.060882-1, cujo relator foi o desembargador Eládio Torret Rocha, que
apontou que “instituir toque de proteger (ou de recolher) tolhe o direito de
ir, vir e ficar das crianças e dos adolescentes, implicando em negativa das
suas qualidades de sujeitos de direito e, conseguintemente, em violação ao
princípio da dignidade da pessoa humana. Ele afirma:
“A
clausura tem o efeito de lhe prejudicar o sadio desenvolvimento, eis que o
priva da convivência com seus pares, cujas experiências, boas ou más,
revelam-se imprescindíveis para a sua plena formação humana como indivíduo
adulto. O sacrifício da liberdade física não condiz, ademais, com um Estado
Constitucional e Democrático de Direito, o qual assenta-se sobre o princípio da
dignidade da pessoa humana e a supremacia dos direitos fundamentais. Muito ao
contrário. Evidencia-se, nessa prática, instituto típico dos estados
autoritários e policialescos, destinado à segregação dos estratos sociais
pauperizados e, por isto mesmo, marginalizados, consubstanciando-se, pois,
verdadeira limpeza social.
A
salvaguarda de nossos jovens não perpassa o manietamento de seus direitos
fundamentais, mas a atuação pontual e efetiva da família, da sociedade e do
Estado – aqui compreendido em seus entes tripartites: União, Estados-membros e
Municípios – em exigir e cumprir as suas atribuições, competências e
responsabilidades sociais, econômicas e jurídicas em tema de infância e
juventude”.
Não
duvido que a medida tenha respaldo de parcela da sociedade, de pais que
priorizam o mais cômodo, que abdicam das suas relações e responsabilidades, preferem
não ver o irracional que nela esta contida, na medida que estas normas são
originárias do perverso sentimento do medo, que segundo Lenine e Julieta
Venegas:
“O medo é uma
linha que separa o mundo
O
medo é uma casa aonde ninguém vai
O
medo é como um laço que se aperta em nós
O
medo é uma força que não me deixa andar”.
Preocupante
saber que o “toque de recolher” foi idealizado em algumas cidades, por portaria
do Poder Judiciário.
Mas alguns
tribunais já decidiram pelo afastamento destas portarias e o Conselho Nacional
de Justiça, em decisão de março de 2010, no processo 0002351-58.2009.2.00.0000 (200910000023514),
promovido pelo Ministério Público de Minas Gerais, relator Ministro Jorge Hélio
Chaves de Oliveira, apontou que a portaria atenta contra qualquer sorte de
razoabilidade, reduz o princípio da legalidade e extrapola os limites
delineados pelo ECA e os excessos praticados pelo magistrado, usurpando,
inclusive, competência privativa da União para legislar sobre direito civil,
penal, comercial processual (artigo 22 da CF/88), as determinações de caráter
geral estabelecidas pela Portaria ainda ofendem os artigos 5º, II; 227, §§3º e
4º e 229, todos da Carta Constitucional, além do artigo 149 do Estatuto da
Criança e do Adolescente.
Não
podemos deixar de enxergar os malefícios que causam para a construção de
uma República, que tem por fundamento a dignidade da pessoa humana (art. 1º da
CF), constituindo um de seus objetivos a promoção do bem estar de todos sem
preconceito de idade e outras formas de discriminação (art. 3º, inciso IV da
CF).
Se
mantidas as normas e portarias estaremos a cercear o desenvolvimento natural de
praticamente toda a infância e adolescência, dos jovens brasileiros,
vitimizando-os, pois o estado colocará na conta da juventude, punindo-os, pela
sua incapacidade de realizar políticas públicas de segurança, eficazes.
O
que esperar de pessoas que não puderam ter um desenvolvimento sadio e seguro?
A
medida está na lógica do estado policial. Suas raízes se fundam na relação de
controle, que não está e nem pode estar ao alcance das relações
humanas. A base para relações sadias deve ser a relação de confiança para
que seja possível ter crianças e jovens efetivamente protegidas.
Interessante
saber que encontramos no pensamento de muitos jovens, os fundamentos das
decisões referidas. Colho como fonte, recente trabalho realizado na Escola
Móbile, em São Paulo, por jovens do 9º ano, que não são atingidos por estas
restrições, e que exercitaram a escrita de carta argumentativa sobre o
tema. Destaco algumas passagens, que dizem mais do que qualquer coisa:
“Os adolescentes
devem aprender a lidar com ela (liberdade) e com as responsabilidades que traz.
Ao invés de criar uma lei que restrinja a liberdade dos adolescentes, seria
infinitamente mais benéfico para a sociedade criar leis que ensinem o jovem a
utilizar essa liberdade sem infringir a liberdade alheia. Além disso, é preciso
constatar que se o adolescente não sabe ser livre, o futuro adulto também não
saberá” (texto 2).
“A
lei por Vossa Excelência implantada pode não ser a melhor maneira de evitar que
os jovens se droguem, bebam ou deixem de estudar… Proibir os adolescentes de
sair de casa após às 23h00 significa tirar deles …importante momento de
socialização.
“Proibir
os jovens de sair durante a noite não os impede de beber ou se drogar”
(texto 3).
“Como
somos todos obrigados a seguir os artigos da Constituição, creio que o toque
pode ser considerado ilegal…para diminuir a quantidade de jovens envolvidos com
drogas, prostituição e álcool, devem ser feitas campanhas para alertar os pais
e estes não devem ser punidos pelos atos dos filhos.
Há
sim aqueles que se envolvem com álcool, drogas e até mesmo prostituição, porém,
há também os que não se utilizam destas drogas. É desvantagem para os segundos
terem como punição o mesmo que os primeiros…o dever de cuidar dos adolescentes
ser de seus próprios pais, e não do governo, sendo eles os responsáveis por
dizer aos filhos quando devem voltar para dormir para não atrapalhar os
estudos” ( texto 4).
“Todos
estão em perigo quando se encontram nas ruas, problema esse de segurança
pública, a qual deve ser urgentemente melhorada. Entretanto, apesar de a norma
implantada objetivar a proteção do jovem, acaba intervindo em sua liberdade e
agredindo o artigo 5º da Constituição….o jovem está pagando com sua liberdade
pelos problemas de segurança. Além disso…penaliza a todos.
O
governo não é responsável pelo controle do jovem, mas sim pela segurança
oferecida a ele” (texto 5).
“Creio
que o senhor saiba que não permitir a circulação dos jovens depois de certo
horário desrespeita o artigo 5º da Constituição, que determina o “direito de ir
e vir”.
Mas
será que a lei está cumprindo totalmente seu objetivo ou está apenas
sacrificando parte da liberdade dos jovens?….sabemos que o diálogo é algo muito
importante durante a adolescência… O diálogo entre os jovens e os pais também é
limitado pelo toque: as famílias acabam não discutindo sobre quais são as
“partes boas” e as “partes ruins” de ficar sozinho à noite na rua, os males que
as drogas podem fazer, entre outros assuntos… Entendo que sua intenção era
proteger os jovens, por isso, sugiro que seja investido dinheiro em educação
(para os adolescentes entenderem os males das drogas, por exemplo) e em rondas
policiais noturnas… e dar mais segurança aos jovens que saem à noite sem más
intenções” (texto 6).
“Tenho
noção dos limites que existem para um Juiz… Essa (portaria) criada por Vossa
Excelência é genérica, tendo efeito de lei, por atingir qualquer jovem de minha
região. Como repito e o senhor sabe, não cabe a um Juiz criar uma lei, isso
podendo ser considerado um crime contra as normas do país…O direito de ir e vir
cabe tanto para adultos quanto para adolescentes” (texto 7).
“Esta
lei pretende tirar a função educacional dos pais, alegando que estes não têm
“controle” sobre seus filhos. Certo ou errado, é direito e obrigação dos pais
avaliar o que é melhor para seus filhos e prepará-los para a vida.
Aliás,
esta medida não é exatamente inovadora, pois a primeira via que os ditadores
fazem… é decretar um toque de recolher… com a desculpa de estar “protegendo” o
povo. Certamente sua intenção não é a mesma, mas o precedente é perigoso…esta
regra precisa ser revogada. São necessárias outras medidas para “acolher” o
povo” ( texto 10).
“A
Constituição brasileira diz que é livre a locomoção no território nacional em
tempos de paz. Nós estamos em tempos de paz, contudo a livre locomoção para os
jovens foi restringida. Essa lei é, portanto, inconstitucional…argumento usado
é que essa lei coloca horários para os adolescentes dormirem para que possam
ter um bom rendimento escolar…não é certo que o jovem irá para a cama depois do
toque…o horário de volta e o rendimento escolar é algo a ser discutido com os
pais, não sendo necessária a intervenção do estado. Isso apenas enfraquece as
relações familiares…o toque de recolher é uma medida que deve ser revogada.
Deve-se pensar na liberdade do ser humano” (texto 11).
“Não
são todos os adolescentes que se envolvem com delitos, drogas e brigas. Então,
essa lei é injusta com os jovens que querem sair até tarde apenas para ir ao
cinema, a restaurantes, shoppings, etc.
Também
é uma questão de confiança entre pais e filhos: limitar brutalmente a liberdade
dos adolescentes não é a solução para acabar com o envolvimento de menores de
idade com drogas ou roubos. Os jovens devem aprender a serem responsáveis por
conta própria, com suas próprias experiências, e não pela imposição dos pais ou
do governo” (texto 12)
Não
podemos seguir o caminho de criminalização da juventude. Sabemos quem serão os
mais atingidos. Temos uma gigantesca normativa de proteção de direitos humanos,
seja no âmbito internacional e nacional (especialmente a Constituição Federal e
o Estatuto da Criança e Adolescente). Já não passou da hora do Estado cumprir
as suas obrigações com suas crianças e adolescentes?
Liberdade
é o componente necessário para que os seres humanos desfrutem da condição
humana. Se queremos jovens que assumam a vida deste país não podemos
deixar de vê-los, como são: sujeitos de direitos, dotados de todos os direitos
e fundamentais e não objeto de intervenção do estado.
Não
podemos esconder problemas, temos que resolvê-los.
Kenarik Boujikian
Felippe, juíza de direito da 16ª Vara Criminal de SP, co-fundadora e
ex-presidente da Associação Juízes para Democracia.
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